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sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Não tenho tempo algum,porque ser feliz me consome Adélia Prado


Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
Adélia Prado.


Parâmetro


Deus é mais belo que eu.

E não é jovem.

Isto sim, é consolo.

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.


Sua poesia é enganosamente prosaica. O leitor superficial não sentirá falta de sua divisão em versos, sempre muito descritivos e de um ritmo imperceptível e sutil. Da mesma forma, sua prosa é ilusoriamente poética: ela não descreve, no sentido clássico de repetir o fluxo do tempo como se segue a correnteza de um rio, mas reproduz flashes de instantes. Estes compõem uma espécie de colcha de retalhos de uma forma tão heterodoxa que, também no romance, não é fácil pesquisar o DNA literário da Autora.

Dona de casa mineira, Adélia é eucarística por excelência. A comida está presente em sua poesia desde sempre. Já no primeiro poema de seu mais recente livro, “O poeta ficou cansado”, ela apresenta armas: “Ó Deus, / me deixa trabalhar na cozinha, / nem vendedor nem escrivão, / me deixa fazer Teu pão. / Filha, diz-me o Senhor, / eu só como palavras.” “É pão de mirra, / come”; “louvai a Deus e reparti a côdea”; “Bate um grande desejo / de torresmos”; “Uma vez fizemos piquenique, / ela fez bolas de carne / pra gente comer com pão”; “Comi em frente da televisão / sem usar faca / e repeti o prato, / como os caminhoneiros que falam de boca cheia / e vi um programa até o fim” – é vasto o refeitório na poética de Adélia.

Adélia, escreve como se preparasse permanentemente seu interior para receber a bênção da realidade, seja ela o produto sujo e fétido das entranhas ( “Vômitos são protestos”) ou o saldo magnífico da observação do belo (“A beleza cresce quando a entendo? Teodoro acha que sim”). Manuscritos de Felipa prova isso.

A mineira Adélia Prado, poesia e prosa com fé no chão

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo.  Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.